Ainda nos perdemos na demência: por que é tão difícil enxergar o que está diante de nós?

É 2025, e mesmo com os avanços da medicina, tecnologia e comunicação, ainda tropeçamos nas velhas ideias quando o assunto é demência. Continuamos cercados de mitos, desinformações e negações emocionais, o que atrasa diagnósticos, sobrecarrega famílias e impede que milhares de pessoas recebam o cuidado que merecem. Essa cegueira não é apenas falta de conhecimento técnico. Muitas vezes, é também afetiva e psicológica — especialmente quando quem está mudando é alguém que amamos profundamente. Esse é o cerne do livro Viagens a Terras Inimagináveis, de Dasha Kiper, que parte de relatos reais de cuidadores e de sua própria experiência para mostrar como a demência é muito mais do que uma condição médica. Ela é, também, uma experiência relacional, emocional e existencial. Por que demoramos tanto a perceber? Kiper descreve um fenômeno comovente e verdadeiro: a “cegueira diante da demência”. Ela ocorre porque, para nós, nossos entes queridos são mais do que um conjunto de comportamentos observáveis — são nossas memórias, nossas expectativas, nossa história compartilhada. Assim, quando algo começa a mudar, nossa tendência é negar, racionalizar, minimizar. Não porque não nos importamos, mas justamente porque nos importamos demais. Afinal, aceitar que um pai, uma mãe, um cônjuge está começando a esquecer, confundir, repetir ou se tornar alguém que já não reconhecemos é, em si, uma pequena forma de luto. Ainda ouvimos “demência senil” — mas isso não existe! Parte do atraso no reconhecimento da demência vem também de uma visão equivocada e ultrapassada do que ela é. Ainda hoje, muita gente se refere à condição como “demência senil”, como se fosse uma consequência natural do envelhecimento. Não é. Demência não é sinônimo de envelhecimento. É uma síndrome que envolve perda progressiva de funções cognitivas (memória, linguagem, orientação, julgamento), causada por doenças específicas, e que pode ocorrer mesmo em pessoas com menos de 65 anos. Entre os tipos mais comuns, temos: Cada uma dessas tem causas, sintomas e progressões distintas. Reduzir tudo a “demência senil” é como chamar todo problema de visão de “miopia”: além de impreciso, confunde os sinais, atrasa tratamentos e obscurece o sofrimento real. A história da demência: da exclusão à escuta Historicamente, pessoas com demência eram invisibilizadas, institucionalizadas ou até ridicularizadas. No século XIX, havia termos como “senilidade”, “alienação mental” ou “esclerose cerebral”. Foi apenas com os estudos de Alois Alzheimer, em 1906, que começamos a compreender a degeneração cerebral como uma condição neurológica com fundamentos patológicos. No entanto, só nas últimas décadas começamos a olhar com mais empatia para o que é viver com demência — e o que é cuidar de alguém com ela. É isso que Dasha Kiper propõe: mudar o foco da doença para a relação, do rótulo para o cotidiano, da frieza clínica para a humanidade dos vínculos que ainda persistem. Cuidar é também uma viagem inimaginável O título do livro não é casual. Cuidar de alguém com demência é como viajar a um território que não compreendemos plenamente. Requer escuta, flexibilidade, e, sobretudo, cuidado com o próprio cuidador. A idealização do “herói que nunca cansa” só aprofunda o sofrimento. Kiper insiste: é preciso dar nome ao cansaço, ao luto, à frustração. Só assim o cuidador pode sustentar o cuidado sem se dissolver nele. Precisamos ver com outros olhos Demência não é um destino inevitável do envelhecimento. É uma condição que pode — e deve — ser diagnosticada precocemente, com acolhimento, estratégia e conhecimento. Mas para isso, precisamos, como propõe Kiper, abrir mão de ver apenas o que queremos ver. Aceitar que até quem amamos pode mudar. E que isso não diminui o amor, apenas o convida a amadurecer. Informação, empatia e escuta ainda são as melhores formas de iluminar essas terras que, sim, podem parecer inimagináveis — mas não precisam ser solitárias.